Pai...

...várias vezes me peguei preparando algo pra falar de você neste momento. Ensaiei títulos, frases, histórias. Pensei em diversas formas de compartilhar com o mundo a pessoa especial que você foi. Mas nunca, na minha tola esperança,... achei que fosse realmente ter que escrever. Como se você fosse viver para sempre, como os super heróis do cinema. Mas esse dia infelizmente chegou, e me pegou totalmente despreparado. Não queria que você fosse embora pra longe de mim. Ninguém queria. Não só por ser meu pai. Isso já bastaria. Mas por ter sido um ser humano admirável, daquele tipo que faz falta em qualquer sociedade. Mas chegar a esta conclusão não é fácil. É preciso ler sua história ao contrário, começando do final.

Você nunca entendeu por que depois de 83 anos você ficou tão doente. Perdeu a visão, e sem ela o ânimo pela vida. Se entregou ao Alzheimer e ao Parkinson, simpáticos senhores que arrasam a vida de quem os carrega, e das famílias ao redor. Nunca te vi chorar reclamando de Deus como nestes dois últimos anos. Por que, meu Deus, por que comigo???? Nós nunca saberemos pai. Só sabemos que talvez fosse seu destino passar por esta prova. E foi seu último capitulo aqui na terra, assim como todos nós um dia também teremos o nosso.

Antes da enfermidade, você era um cara de sorte. Nunca tinha operado nada, sequer ficou internado. Era um poço de saúde. Se cuidava, fazia exercícios, comia comida saudável. Viveu plenamente seus 83 anos antes da doença, que podem ser divididos em duas etapas: antes e depois da aposentadoria. Antes da aposentadoria, você trabalhava como todos. Forte igual um touro, não deixava faltar nada pra nós, exceto você. Nossa relacionamento era limitado a alguns minutos durante a semana, e aos domingos onde você também precisava descansar. Mesmo assim, temos muita história pra contar ao seu lado. Dos domingos de sol no Aterro do Flamengo. Dos finais de semana no Calabouço, sede náutica do Vasco. Onde aliás você nos ensinou a amar esta bandeira, de origem portuguesa. Ou das idas à Colônia de Férias do Sesc. Quantas vezes fomos a excursões do sindicato? Perdi a conta. O cinema no Palácio ou no Odeon. As compras na Mesbla ou na Sears. E quando abriu o Barra Shopping? Chegamos a fazer uma excursão pra lá.

Mas a parte que eu mais gosto da sua vida acontece após a aposentadoria. É verdade que você se aposentou e ainda continuou por anos a trabalhar. Se negava a parar, achava que ia morrer em casa. Até que um dia o destino interferiu. Sua loja no Centro pegou fogo, e você acabou sem ter aonde trabalhar. Sofreu por pouco tempo em casa, até descobrir que a vida na verdade não estava no trabalho, e sim fora dele. Você trocou a roupa social pela bermuda e o tênis. Mudou seu hábitos, começou a fazer exercícios, a conhecer seus vizinhos, e, porque não dizer, sua família. Fiscalizava tudo que acontecia no bairro, andava pela rua o dia inteiro. Ia todos os dias no mercado, e cada dia comprava o que estava em promoção. Parecia que a sacola do mercado era uma extensão das suas mãos. Procurou o que fazer e se dedicou a muita gente. À mim, à minha mãe, aos meus irmãos, aos seus amigos, aos porteiros, aos faxineiros do prédio, a desconhecidos. Você mostrou um lado seu que eu não conhecia, e que aos poucos fomos enxergando, embora você não fizesse propaganda. Cuidou do jardim do prédio. Mas peguei vários furos seus. Estes dias um dos porteiros do meu prédio perguntou por você. Contei como você estava, e ele disse que você era muito querido. Que todo natal você levava uma garrafa de vinho para cada um deles. E você nunca me disse nada. No dia da sua passagem, o porteiro do seu prédio, que normalmente não deixava carros de visitante entrar, me disse que naquele dia eu poderia entrar quantas vezes fosse necessário. Me contou que gostava muito de você, que todo final de ano você assinava a caixinha deles, e ainda ficava arrecadando dinheiro e questionando a merreca que os outros davam. E você nunca me disse nada.

Você tentou de todas as formas que todos ao eu redor vivessem em paz. Se esforçava pra fazer das diferenças entre todos nós, um problema menor. E nós não enxergávamos isso. Seu ar sempre simpático, contrastava com suas palavras reprovadoras quando não estávamos sendo uma família de verdade. E eu mesmo demorei a perceber isso. Você fazia suas confissões e reclamações no seu Diário (sim pai, eu abri e li !!!) sobre seus filhos. Quanto problema, e logo triplicado! Hoje eu entendo muitos dos conselhos que você quis me dar. Só quando viramos pais é que passamos a entender certas coisas. Os riscos que corremos sem perceber, e que você tanto alertava. Os maus hábitos, que você tanto combatia. Mas uma coisa não posso negar. Você se esforçou para fazer dos seus 3 filhos, pessoas de bem, de sucesso. Esse é um mérito da minha mãe também, mas você nunca quis que fossemos como você. Tinha orgulho da gente, e multiplicava o nosso valor para todos os seus amigos. As vezes ficava constrangido do quanto você gostava de elogiar a gente, a maioria das vezes exageradamente. Muito exageradamente. Mas esse era você, e hoje eu entendo.

Você tinha um jeito único e engraçado de falar. Seu sotaque português, onde você trocava o V por B e vice-versa, gerava palavras que ficaram marcadas pra gente. Como as "vermudas" que você vestia, ao invés de bermudas. Por conta disso passei a te chamar de "Balde". O que seria o Valdemar com B, como você mesmo pronunciava. E a sua mania de dizer que tudo era especial (na verdade você fala "special"). As comidas estavam sempre muito "gustosas". E o seu "Oláaaaaa" tradicional quando brincava com uma bebê ? Era sempre o mesmo!

Só acho engraçado quando eu dizia para as pessoas que você nos batia de cinto quando éramos pequenos. Você negava. Mas que cara-de-pau! Não posso dizer o quanto era eficaz, só sei que doía. Era o seu jeito de educar, de dar limites e de ser respeitado. Mas preciso confessar um pecado. Lembra quando você consertou e pintos nosso primeiro carro, aquela Brasília vermelha? Pois é, indo pra faculdade eu bati com ele. Pra você não ver, fui até o funileiro, e implorei para ele consertar e pintar rapidinho. Escondi o carro alguns dias e fui pegar. Ficou perfeito! Não tive coragem de te contar. Mas acho que agora você não vai ficar bravo comigo

Mesmo sendo uma nova pessoa após a aposentadora, você ainda se negava a viver. Digo isso porque você sempre colocava obstáculos para viajar. E viajar é preciso. Viajar é viver. Demorou para você entender isso, mas graças a Deus, você acabou pegando o gosto, e pode aproveitar bastante a vida. Quando você não podia ir, seus filhos te ajudavam. E você ia. Quando você não queria ir, seus filhos pressionavam. E você ia. Uma das minhas maiores alegrias na vida, foi ter viajado com você, só nós dois, para Nova Iorque. Pra variar você não queria ir, não tinha dinheiro. Mas você foi. E foi a única vez que passamos 10 dias juntos, só você e eu, andando, fazendo compras, comendo, rindo, passeando, vivendo. Passamos momentos engraçados, como quando você perguntou quem ficava falando sobre qual caminho eu deveria seguir dentro daquela caixinha. Aquilo é um GPS pai. Te expliquei várias vezes como dizer obrigado em inglês, e você até dizia. Mas só depois que as pessoas não podiam mais ouvir. Primeiro você dizia obrigado em português. Foram tantos os momentos. Tantos que ficarão guardados para sempre em meu coração e nas diversas fotos que tiramos.

Em muitos momentos você me deu a mão. E acho que posso dizer que fiz o mesmo. Não consegui te curar, nem evitar que você ficasse doente. Não consegui mudar o rumo natural da vida, que é viver e morrer. Uma coisa somente ficou pendente nesta nossa jornada juntos: não conseguimos ir juntos à Portugal. Mas um dia hei de levar o que tiver sobrado da sua matéria, e espalhar em Ponte de Lima, onde você nasceu e cresceu. Não pai, isso não vai diminuir a saudade e a dor da sua partida. Eu queria você pra sempre ao meu lado, são. Rindo como sempre, costurando os fatos para que todos fiquem bem e sejam felizes. Me chamando de Kikoooouuuu com seu sotaque português. Aliás, porque me colocou o nome de Francisco, se sempre me chamava de Kiko ? Você costumava rir quando te perguntava isso. Agora minha pergunta vai ficar sem resposta.

Deus te guie e te guarde nessa sua nova etapa. Continue olhando para nós aqui embaixo do céu. Porque todos nós estaremos sentados, ao entardecer, esperando você brilhar.

Te amarei para sempre.
Seu filho Kiko (batizado como Francisco, né pai ?)

Comentários

Postar um comentário

Deixe seu comentário...

See what is popular

A sexta-feira mais negra de todas: descanse em paz João Gustavo Santos !

João Gustavo Santos, lembranças são o que levamos desta vida

Cloud o que ?